17 outubro 2007

Art. 96, nr. 2, al. c) da Lei nr 10/2004, de 25 de Agosto (Lei da Família) - Mais um Lapso do Legislador?

Analisando a Lei da Família (LF), aprovada pela Lei nr. 10/2004, de 25 de Agosto, deparei-me com uma questão que, à meu ver, parece representar mais um lapso do Legislador. Trata-se da al. c) do nr. 2 do art. 96 onde se estabelece o seguinte:

"2. Os cônjuges devem adoptar a mesma residência, excepto:

....

c) Se tiverem pendente acção de declaração de nulidade ou de anulação do casamento, de separação judicial de pessoas e bens ou de divórcio."

Ora, a análise isolada deste artigo parece não suscitar problema algum, uma vez que, buscando o seu sentido e alcance, chegariamos à conclusão de que o dever de coabitação dos cônjuges não seria exigível nos casos em que estivesse em curso, por um lado, uma acção visando a declaração da invalidade do casamento (quer por nulidade quer por anulação) ou, por outro, uma acção visando a separação de pessoas e bens ou de divórcio.

Porém, quando confrontada esta disposição com à resultante dos arts. 52 e seguintes (ss) da LF, aquela solução, propugnada no parágrafo anterior, já não parece ser líquida, pelos menos parcialmente. Analisemos os fundamentos desta afirmação.

O art. 52 da LF, estabelece a regra geral relativa a validade do casamento. E, estalece-a nos seguintes termos":

"É válido o casamento relativamente ao qual não se verifique algumas das causas de inexistência jurídica, ou de anulabilidade especificadas na lei".

Como se vê, desta disposição que fixa a regra geral aplicável à validade do casamento, não resulta que uma das causas de invalidade do casamento possa resultar de uma causa de nulidade, mas só e só, da inexistência jurídica ou da anulabilidade - E, o Legislador fixa nos arts. 53 e ss, as causas susceptíveis de consubstanciarem a inexistência jurídica do casamento e, nos arts. 56 e ss, as causas da anulabilidade do casamento. Mais para frente não encontramos, na LF, as causas de nulidade de casamento .

Ora, se assim é, então a que "... acção de declaração de nulidade... do casamento..." o Legislador se refere na al. c) do nr. 2 do art. 96 da LF?

E mais, existirão na LF, à semelhança do que se estabelece quanto à inexistência jurídica (arts. 53 e ssda LF) e da anulação do casamento (arts. 56 e ss), causas de nulidade do casamento? Serão as causas de nulidade do casamento atípicas, ou seja, sem previsão legal?

Por tudo quanto já se disse antes, parece-me que se dispensam respostas muito desenvolvidas à estas perguntas, pois, pelo menos para mim, parece óbvio que a lei não prevê nenhuma causa de nulidade (sublinhe-se, de nulidade) que possa por em causa a validade do casamento (limita-se sim, a condicionar a validade do casamento à inexistência de causas de inexistência jurídica ou de anulabilidade especificadas na lei).

Colocado o problema nestes termos, mais uma pergunta se impõe fazer: Terá o Legislador, na al. c) do nr. 2 do art. 96 da LF, dito mais do que pretendia dizer (quando se referiu à acção de declaração de nulidade)? Ou será que disse algo que não pretendia dizer?

Se a resposta à primeira questão for positiva, no sentido de que o Legislador disse mais do que pretendia dizer, então teremos que interpretar aquela disposição legal de forma restritiva (retirando a parte que julgamos estar à mais). E, nestes termos reduzir-se-ia o âmbito da al. c) do nr. 2 do art. 96 da LF à ideia de que o dever de coabitação entre os cônjuges não existe quando esteja pendente uma acção de anulação do casamento, de separação de pessoas e bens ou de divórcio. Retirariamos, claro, a questão relativa à acção de declaração de nulidade do casamento.

Porém, se a resposta à segunda questão for positiva, sendo certo, claro, que à da primeira é negativa, então teremos que proceder a uma interpretação correctiva, no sentido de que o Legislador, na al. c) do nr. 2 do art. 96 da LF, queria referir-se à "acção na qual se invoque a inexistência jurídica" e não à "acção de declaração de nulidade".

Eu, pessoalmente, acho que é esse segundo sentido que o Legislador pretendia atribuir à disposição contida na al. c) do nr. 2 do art. 96 da LF. Pois, parece-me que o que o Legislador pretende é condicionar à obrigação de coabitação dos cônjuges à inexistência de causas que possam compromter a validade do casamento (previstas nos arts. 52 e ss da LF), designadamente a inexistência jurídica e a anulabilidade. Mas um obstáculo legal opõe-se a esta conclusão, razão pela qual, embora possa ser tomada em consideração à nível do Direito a constituir, não é de se aceitar à nível do Direito constituído. Analise-mo-lo:

É que o art. 9 do Código Civil (C.C.), depois de estabelecer o princípio geral de interpretação da lei no seu nr. 1, nos termos do qual ela não deve cingir-se à letra da lei (embora dela parta), mas sim reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, fixa uma importante atenuação (com vista a conferir uma maior segurança jurídica) a esta regra, no seu nr. 2, nos termos a seguir transcritos:

"2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso."

Ora, quer isto dizer que, na interpretação da lei não podemos considerar válido o sentido que, mesmo se harmonizando com a vontade presumível do Legislador (hipotética), não tenha, no dizer da lei, um mínimo de correspondência com a sua letra (sublinhe-se, letra), ainda que esta correspondência tenha sido imperfeitamente expressa.

Assim, na esteira desta regra restritiva resultante do nr. 2 do art. 9 do C.C., não me parece que a al. c) do nr. 2 do art. 96 da LF, permita uma interpretação da qual resulte que o legislador pretendia dizer que o dever de coabitação entre os cônjuges não existe se estiver pendente uma acção na qual se invoque a inexitência jurídica do casamento. É que esta interpretação, mesmo correspondendo a vontade hipotética do Legislador, não teria um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, com a disposição contida na al. c) do nr. 2 do art. 96 da LF.

Perante este problema, e admitindo como certas as considerações acima transcritas, mostra-se importante que o Legislador proceda as correcções que se impõe fazer à al. c) do nr. 2 do art. 96 da LF. E, neste sentido parece-me que a solução parte por considerar como certa a ideia de que, como já o disse anteriormente, o Legislador pretende, naquela disposição legal, condicionar o dever de coabitação dos cônjuges à inexistência de qualquer causa que possa comprometer a validade do casamento, designadamente, a inexistência jurídica ou a anulabilidade do casamento.

Mas, já mesmo a terminar, não deixa de ser estranho que o Legislador se tenha referido à nulidade como uma possível causa de invalidade do casamento, quando esta não tenha sido prevista não só na actual LF, como também nas disposições do Livro IV do C.C. de 1966, que regulavam as relações jurídico-familiares. A estranheza é maior ainda porque a nulidade do casamento como uma causa de invalidade somente era prevista no domínio do código de Seabra (de 1866, que precedeu o actual Código Civil). Escuso-me de tirar as conclusões destes factos estranhos.

SM

5 comentários:

ilídio macia disse...

Caro amigo e colega SM, estás a prestar um grande serviço à nossa esfera pública. Força, meu caro!

stayleir marroquim disse...

Obrigado IM.
SM

Anónimo disse...

Não acha que inexistindo juridicamente o casamento não se pode falar de conjuges nem,por consequência, de um dever de que apenas aqueles podem ser titulares?

Anónimo disse...

Parabéns pelo artigo, de grande relevancia para mim estudande de direito!

stayleir marroquim disse...

NR 2,

Os meus mais sinceros agradecimentos.
E fico também feliz pelo facto de o artigo lhe ter sido útil.

SM